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Qual é a música? |
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Rio de Janeiro, 11 outubro 2008. Prezado Ministro da Cultura Juca Ferreira Iniciando o diálogo proposto quinta-feira no Palácio Capanema, vou tentar informar e formular ao ministro da Cultura algumas questões fundamentais para a maioria dos músicos profissionais brasileiros. Atenta à sua brilhante observação quanto ao cuidado que devemos ter para não corromper as palavras, me pergunto se não seria esse o maior cuidado que se deveria ter. Para propor políticas públicas para a música, precisamos fazer a pergunta certa: qual é a música a que nos referimos? Sem a criação não há obra, sem a interpretação não há comunicação da obra. O Fórum de Música do Rio de Janeiro optou por se constituir, exclusivamente, de músicos que, como autores e/ou intérpretes, formam o que nomeamos Núcleo Criativo, composto pelos únicos elementos indispensáveis à existência da obra de arte, mas que, historicamente, é massacrado pelos setores que dele retiram prestígio, lucro e poder. Que setores são esses? Na atualidade são exatamente as denominadas "entidades que compõem a cadeia produtiva de música", que o Ministério da Cultura convidou para vetar, na Câmara Setorial, todas as propostas dos músicos que pudessem, minimamente, ameaçar o poder ditatorial que elas exercem e sempre exerceram sobre o Núcleo Criativo. Só para ilustrar, em dezembro de 2005, na sétima e última reunião da Câmara de Música sobre o tema - consumo - a primeira frase do documento dos músicos "Democratizar, Descentralizar, Desonerar e Fomentar o Consumo da Música Brasileira na sua diversidade" sofreu a primeira tentativa de veto, emblematicamente, para o termo "democratizar", por parte do representante da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (ABERT), sobre a seguinte alegação: "Não há necessidade de usar a palavra democratizar porque senão fica parecendo que não é". No que eu respondi: "Não nos parece que o ‘jabá’ seja uma prática democrática." A partir daí foi uma sucessão de vetos por parte inclusive de entidades que nunca poderiam estar nessa reunião, e muito menos nos vetar, como por exemplo, o ECAD. Como todos sabem, o ECAD é uma empresa privada, escritório técnico criado por nós para executar arrecadação e distribuição dos nossos direitos autorais. Toda sua estrutura física e pessoal é sustentada com os nossos recursos. Então eu pergunto: que lógica capitalista permite que um empregado vete o patrão e o obrigue a se associar? O veto da ABERT, da ABPD, do ECAD e da ABMI se deu à singela proposta "Garantir aos titulares do direito autoral de execução pública a mesma forma de pagamento praticada diretamente ao titular como no direito autoral fonomecânico." Sim, o direito autoral gerado por venda de discos pode ser recebido diretamente pelo titular que autoriza ou não à gravadora a utilização da sua obra. Ele não é mais obrigado a editar. Por qual lógica um titular de direito autoral é obrigado a usar um atravessador, no caso as associações de direito autoral e as editoras, para receber seus pagamentos? Para que servem essas empresas? Para nada! Minto. Servem sim. Para agiotagem. Na realidade, a corrupção de conceitos permite vários erros como, por exemplo, denominar independente uma gravadora nacional. Independente foi o termo que definiu o modo de produção da arte que se desenvolveu nos anos 1970, cuja propriedade era do Núcleo Criativo. Uma gravadora nacional, e não vai aí nenhuma crítica quanto à competência e bom gosto com que algumas vêm produzindo a música brasileira, é uma gravadora nacional! E que reproduz o modo de produção das multinacionais quanto à propriedade do fonograma, embora, louvavelmente, já venham flexibilizando essa propriedade por meio de licenciamentos. E, ao contrário do que foi dito na reunião pública de quinta-feira, onde por sinal não havia representante da música na mesa, as gravadoras não estão acabando! Pelo contrário, existe uma grande produção por esse Brasil afora que necessita sim de uma política de Estado, que garanta estrutura para a circulação desses produtos nacionais, com ênfase nos auto-produtores. Auto-produtor foi o termo cunhado por Antonio Adolfo para denominar o corrompido independente. Auto-produtor, auto- poyesis, auto-criação. Antonio foi feliz na escolha. Outra questão. Imediatamente após a posse do demissionário presidente da Funarte, nossa indicação, com o aval de várias entidades para a direção do Centro de Música da Funarte (CEMUS), foi solenemente ignorada. Será que é algum absurdo propor um músico para gestão de um centro de música? São inúmeras as questões que daremos continuidade, num segundo momento, como as propostas para a Lei Rouanet. Voltando o foco para a Câmara Setorial de Música, que se extinguirá sem ter cumprido seu papel e, para evitar que caiamos mais uma vez nas tramas múltiplas da burocracia e da falsa representação, precisamos deixar muito clara a realidade atual. Sob a intenção de descentralizar decisões e lideranças do chamado eixo Rio-São Paulo, nas cidades que lançaram o movimento organizado para pleitear políticas públicas para o setor, aconteceram equívocos. O primeiro deles foi uma mobilização artificial de alguns estados onde os fóruns foram ocupados por produtores e não por músicos. Em segundo lugar, as realidades regionais são diversas, apresentam características próprias que dificultam uma posição unificada. Os músicos não tiveram reuniões presenciais em nível nacional para a troca de informações necessárias ao nivelamento das experiências. O contato deu-se por listas de discussões na internet e algumas poucas e insuficientes vídeo-conferências. Louvamos a intenção de descentralizar e democratizar o processo, mas pergunto se isso não seria conseqüência, e não ponto de partida, para a política responsável que almejamos. Não se pode desconhecer que Rio e São Paulo lançaram nacionalmente artistas das mais diversas regiões do país. Desconhecer que esses centros concentram a maioria da classe profissional de música e, por esse motivo, conhecem por experiência a realidade da profissão, é jogar fora a oportunidade histórica que se apresenta. O voto unitário dos fóruns estaduais alijou das esferas de decisão a representação legítima de músicos que conhecem, porque vivem, trabalham e lutam há muito tempo por melhores condições para todos. Esperamos que a reflexão do ministro da Cultura sobre as questões que trazemos não permita mais um equívoco. Ana Terra, compositora, e integrante da Coordenação do Fórum Permanente de Música do Rio de Janeiro (FPM/RJ) |
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sábado, 11 de outubro de 2008
Carta ao Ministro da Cultura - 11/10/2008
quarta-feira, 1 de outubro de 2008
Autores, Artistas e seus Direitos - Seminário 27 e 28/09/2008
O estado da música
e da cultura no país | |||||
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Comunicação da compositora, escritora e produtora Ana Terra, como palestrante no seminário "Autores, Artistas e seus Direitos", promovido pelo Ministério da Cultura, no Rio de Janeiro, em 27 e 28 de setembro de 2008. O evento, que fez parte do Fórum Nacional de Direito Autoral, foi promovido pela Coordenação-Geral de Direito Autoral do Ministério da Cultura, com apoio da Funarte. De acordo com o MINC, o encontro objetiva angariar subsídios dos autores e artistas quanto aos benefícios e dificuldades impostos pela atual estrutura do direito autoral no Brasil; ouvir quais são os seus anseios e receios diante das questões impostas pelo advento das novas tecnologias de produção e difusão dos bens culturais; e discutir como têm se dado as relações contratuais com os investidores da área cultural.
“Nosso planeta está passando por um momento onde atingimos o ápice do ciclo cujas regras são ditadas por um conselho presidido pelo deus mercado. As conseqüências estão aí. Vivemos uma guerra civil global e nunca se viu tantos crimes bárbaros, porque a essência da vida que não está mais em nós se vinga e reaparece pelo lado mau das coisas. O grande desafio do século XXI será rever os princípios, as premissas que norteiam nossas práticas de vida. E muitas vozes, no mundo inteiro clamam pela volta da vida.
Não me darei à pretensão de apresentar um texto jurídico diante de tantos especialistas no assunto. Não sou advogada, sou artista, autora, embora venha há mais de 30 anos advogando a causa dos meus colegas compositores e intérpretes. Também como cidadã, venho participando de muitos movimentos políticos em defesa dos princípios que orientam minha vida. E é dessa condição, de artista e cidadã que darei meu depoimento neste seminário.
Quando comecei profissionalmente como compositora tive vários espantos. Admiradora desde a infância, da música popular brasileira e de seus maravilhosos autores e intérpretes, ao conviver de perto com alguns dos meus ídolos, a realidade se mostrou muito distante da imagem que as pessoas, em geral, fazem do mundo artístico. Vou trazer fatos porque foram fundamentais na minha trajetória para tentar compreender vários paradoxos.
Foi um presente do destino conhecer e conviver com o autor dos versos que mais me emocionaram na infância.Lembro até hoje de meu espanto de menina ao ouvir no rádio a seguinte frase cantada: "pobre de quem acredita na glória e no dinheiro para ser feliz" . Por conta de minha inclusão na família, convivi como nora e depois como amiga e mãe de seus netos, com os nossos saudosos Dorival Caymmi e Stella. Posso dizer que os dois me proporcionaram, por mais de três décadas, muitos dos melhores momentos da minha vida.
Sentado em sua cadeira de balanço num apartamento comum de classe média, em sua querida Copacabana, Dorival calmamente ia me respondendo as perguntas que eu, abismada, lhe fazia. Porque, evidentemente, eu não compreendia o motivo de um dos mais importantes nomes da canção brasileira não ser um homem rico. É claro que tanto eu quanto ele fazemos parte de uma classe que é privilegiada num país em que fazer três refeições por dia é sem dúvida um privilégio. Mas o que me espantava era ver que os gerentes da nossa profissão, isto é, empresários, produtores, advogados, administradores e editores, faziam parte de uma outra elite: a que ganha muito dinheiro com a obra dos profissionais do Núcleo Criativo.
Chamo de Núcleo Criativo aquele formado pelos únicos elementos indispensáveis à existência da obra musical: o autor e o intérprete. Sem a autoria não há obra. Sem a interpretação não há comunicação da obra. Por haver uma conexão natural entre eles, os direitos do intérprete (cantor, instrumentista, arranjador) são conexos aos do autor.
Por trabalhar com as palavras e gostar muito delas, implico, às vezes por motivos estéticos, outras vezes por motivos éticos, com algumas delas, quando as empregamos mal. Por exemplo, a palavra "cadeia" me remete sempre a prisões. A expressão "cadeia produtiva da música" me incomoda muito mais porque coloca o autor e o intérprete como simples elos de uma enorme corrente, quando eles são a única razão da existência de inúmeros profissionais do universo econômico da música.
Claro que muitos são honestos e bons parceiros, tenho amigos pesquisadores, produtores, empresários, advogados, e não estou fazendo críticas pessoais, mas sim ao conceito que inverte e corrompe o sentido das coisas. Quem tem direito, de fato, de estipular preços e contratar esses serviços são os artistas, e não o contrário. O que tenho assistido é uma grande quantidade de profissionais que, na verdade, integram, como diz um amigo músico, a "cadeia destrutiva da música" comportarem-se como donos do artista e de sua obra.
Voltando ao Dorival, e sua cadeira de balanço, fiquei sabendo no início dos anos 1970 que a maior parte de seu repertório era gerido por editoras musicais. Como assim editoras musicais?
-"É que antigamente, minha filha, a forma de divulgação da música era feita por partituras. Com a partitura impressa, os compositores corriam às orquestras para tentar divulgar seu trabalho. Ainda não era o disco gravado, mas as grandes orquestras eram os principais canais difusores da música."
-“Sim, Dorival, mas agora É O DISCO!!! Para que servem as editoras AGORA?”
-"Pois é, Aninha, hoje elas só servem para autorizar gravações e
fazer adiantamentos, que a gente está sempre devendo."
-“Mas o compositor não pode autorizar e receber direto da gravadora?"
-“Não minha filha, porque a maioria das editoras hoje em dia é das gravadoras, e tem uma tal de cessão de direitos que o compositor é obrigado a assinar senão não é gravado".
-“E as sociedades de direito autoral que você ajudou a fundar?”
-“Ih, nem queira saber... o início foi terrível, chamavam até a polícia quando se falava em cobrar direito autoral das casas noturnas, que usavam a nossa música e não queriam pagar. Aliás, a idéia de que a autoria da música devia ser paga nasceu de um
episódio na França. Compositores jantavam num restaurante quando músicas deles eram executadas. Depois do jantar, levantaram para sair e o dono do estabelecimento veio cobrar a conta. Eles responderam: a conta está paga. ‘Foi paga com a nossa música que vocês serviram aos fregueses’.”
Bom, agora deixemos em paz o bom Dorival, e vamos ao meu discurso. Essas sociedades, que eram arrecadadoras e distribuidoras do direito autoral, foram proliferando de tal maneira que causavam uma enorme confusão na hora de cobrar dos usuários. Músicos e aliados, então, resolveram a desordem da seguinte forma. Seria criado um órgão normativo e de fiscalização, o Conselho Nacional de Direito Autoral e uma central única, uma empresa privada constituída pelos titulares de direito autoral. Criou-se então o CNDA e o ECAD - Escritório Central de Arrecadação de Direitos,
Pela lógica do bom senso não haveria mais necessidade de sociedades, mas pela lógica do empreguismo, as sociedades continuaram a existir meramente como repassadoras dos pagamentos do ECAD aos respectivos associados. E mais que isso, como gravadoras e editoras são tidas como titulares o direito autoral junto ao Núcleo Criativo, e o ECAD é dirigido pelos seus donos, um conselho formado por essas sociedades administra o ECAD.
Conheço bem essa estrutura porque fui fundadora do quadro de compositores e exerci cargos eletivos na AMAR- Associação de Músicos, Arranjadores e Intérpretes, primeira sociedade dirigida apenas por titulares do Núcleo Criativo, e que foi fundada com o objetivo principal de defesa do direito conexo do músico.
Acho importante esclarecer vários equívocos que são repetidos irresponsavelmente e acabam também se naturalizando: O ECAD não é estatal. O ECAD não é monopólio. O ECAD cobra em nome dos titulares a remuneração do seu trabalho. Portanto, os funcionários do ECAD não são porta-vozes da classe, e não podem participar de decisões políticas como, por exemplo, ter assento na Câmara Setorial da Música como aconteceu ou no Colegiado que a substituirá. O ECAD também não pode impedir que nenhum titular possa receber diretamente do ECAD seus pagamentos, se não quiserem pertencer a nenhuma sociedade. Já consultei vários advogados e eles reafirmaram o raciocínio óbvio: o direito constitucional de livre associação assim como não impede, também não obriga ninguém a se associar contra a sua vontade. E mais ainda, óbvio, os proprietários da empresa é que decidem a forma de sua remuneração e não os empregados. Quem pode mais, pode menos.
A demonização do ECAD pela mídia serve aos interesses dos proprietários dos meios de comunicação, muitos deles políticos profissionais, e outorgantes das concessões públicas, que não querem pagar direito autoral. Nesta cultura institucionalizada do furto do trabalho alheio, estão tentando convencer o consumidor das obras musicais que esse trabalho não deve ser pago. Como assim? É um comércio como outro qualquer! Por que as instituições não querem pagar a música que utilizam dando esmola com o chapéu alheio? Se, por exemplo numa cerimônia de casamento, além das flores, do vestido da noiva, do bufê, até o padre é pago, por que não a música? Que lógica maluca é essa?
Penso agora como, realmente, a história se repete como farsa. Quando a farra de download começou na internet, nem o poder público nem a sociedade civil ensinaram aos meninos que isso era furto e que furto é crime. O crime se naturalizou com a idéia que a internet é um território livre e democrático, quando todos sabem que grandes corporações são proprietárias desse imenso território virtual.
Naturalizou-se o furto também quando a prática de comprar CDs pirateados começou a ser justificada, com o singelo argumento que os CDs originais são muito caros. Bom, já que é assim, proponho eu a vocês, vamos todos falsificar cédulas de dinheiro porque o dinheiro original é muito caro! Naturaliza-se o crime quando as palavras e os conceitos são corrompidos. Quando os proprietários de casa noturna cobram o chamado couvert artístico e esse dinheiro não vai integralmente para o artista. Quando as gravadoras pagam o cachê do músico e o obrigam a assinar um recibo ilegal de cessão de direitos autorais. Quando a pessoa jurídica, como a gravadora e editora, escoradas em acordos internacionais escusos, apropriam-se de um direito que é exclusivamente da personalidade, da pessoa física, do artista.
Seguindo essa lógica, é natural, então, que os músicos solicitem ao Estado o direito à isonomia. Trocando em miúdos, que os músicos sejam incluídos, formalmente, como sócios da pessoa jurídica. Que nossos nomes sejam incluídos, como acionistas e recebam os dividendos, na razão social de todas as empresas industriais e comerciais que se utilizam da obra musical, inclusive provedores de acesso à internet e a indústria da informática.
Além desta, lembro outra proposta e que tem precedente histórico na Inglaterra que, pelo que eu saiba, é um país capitalista. A famosa BBC de Londres é financiada por uma taxa incluída no preço dos aparelhos de TV vendidos. Já que é tão difícil coibir o furto na internet e, como dizem, "baixar música de graça já é cultura", então vamos encontrar uma solução para remunerar o trabalho dos autores, instituindo uma taxa no preço de todos os suportes físicos que permitem o uso da internet.
Repito mais uma vez: sem a autoria não há obra, sem a interpretação não há comunicação da obra. A criação artística nasce de um estado subjetivo da personalidade, anterior e independente das normas jurídicas, mercadológicas, sociais e políticas.
E, agora, passando de leve no terreno do direito formal, cito o jurista Goffredo Telles Jr.: “A personalidade consiste no conjunto de caracteres próprios da pessoa. A personalidade é que apóia os direitos e deveres que dela irradiam, é objeto de direito, é o primeiro bem da pessoa que lhe pertence como primeira utilidade, para que ela possa ser o que é, para sobreviver e se adaptar às condições do ambiente em que se encontra, servindo-lhe de critério para aferir, adquirir e ordenar outros bens.”
“O direito objetivo autoriza a pessoa a defender sua personalidade de forma que os direitos da personalidade são os direitos subjetivos da pessoa de defender o que lhe é próprio, ou seja, a identidade, a sociabilidade, a reputação, a honra, a autoria. São direitos comuns da existência, porque são simples permissões dadas pela norma jurídica, a cada pessoa, de defender um bem que a natureza lhe deu, de maneira primordial e direta.”
As diretrizes gerais do Plano Nacional de Cultura estão num caderno impresso, que se destina à difusão dos debates públicos, o que vem acontecendo em todo o país por iniciativa do Ministério da Cultura, e está aberto às contribuições que vão subsidiar a relatoria do Projeto de Lei 6835/2006, que instituirá o Plano Nacional de Cultura do Brasil.
Este Plano orientará a atuação do Estado brasileiro na próxima década, na aplicação de políticas públicas na área da cultura. No item 4 dos Valores e Conceitos do Plano está escrito: “A sociedade brasileira gera e dinamiza a cultura, a despeito da omissão ou interferência autoritária do Estado e da lógica específica dos mercados. Não cabe aos governos ou às empresas conduzir a produção da cultura, seja ela erudita ou popular, impondo-lhe hierarquias e sistemas de valores...”
Bom, vamos resumir o papel que o Estado e os governos tem feito na área musical. Quando a indústria fonográfica multinacional se instalou no país, foi financiada, através do governo, pelos trabalhadores brasileiros como, aliás, é pratica corrente em todos os setores. A música estrangeira que aqui chegava produzida e paga nos países de origem, era majoritariamente divulgada pelos meios de comunicação, concessões públicas, diga-se de passagem, e consumidas por nós, colonizados que somos.
Fomos abençoados por Deus que dotou os músicos brasileiros de extraordinário talento e isso ninguém pode negar. O que o Estado fez? Como forma de incentivar a produção fonográfica da música brasileira, isentou do pagamento de impostos, o ICM na época, as gravadoras multinacionais. Então não houve investimento de capital estrangeiro, como nunca há. Quem financiou a música brasileira “de mercado” foi o dinheiro do trabalhador brasileiro que o Estado repassou pelo mecanismo da renúncia fiscal. E continua repassando até hoje, por meio da lei Rouanet.
O Estado e os governos brasileiros tem como tradição financiar com dinheiro público as empresas privadas nacionais e estrangeiras de todos os setores. Na área da cultura, o Ministério da Cultura adota essa prática, que é repassar os recursos públicos para as empresas “escolherem” quem elas vão patrocinar, como se fosse seu investimento! Ao seguirem a “lógica do mercado”, escolhem somente os produtos que lhes dêem maior visibilidade! É com essa lógica de mercado que as empresas, financiadas pelo dinheiro público, escolhem que projetos serão patrocinados! Sem falar, só para dar um exemplo, do Cirque de Soleil, empresa estrangeira favorecida por recursos subsidiados através da lei Rouanet, criada para o incentivo à cultura brasileira.
Alguém pode perguntar se eu defendo o intervencionismo do Estado. Mas o Estado é intervencionista por definição, haja vista a gigantesca operação do país ícone do capitalismo, que transfere bilhões de dólares para salvar o Grande Cassino da Especulação Financeira, levando à ruína milhões de trabalhadores em todo o mundo. O Estado, intervencionista por natureza, poderia, por exemplo, intervir
para equilibrar as relações desiguais entre capital e trabalho, que é a função do Estado democrático.
Poderia não ter dado poder de veto às empresas que foram convidadas para "pactuar" com os músicos na Câmara Setorial da Música. Pactuar o quê? Desde quando as classes dominantes pactuaram alguma coisa com o trabalhador a não ser por pressão? O Estado intervencionista poderia, por exemplo, deixar de tratar o artista e o pequeno produtor como um bandido que precisa apresentar milhões de comprovantes e cartas de anuência para solicitar, não o dinheiro, mas a autorização para pedir pelo amor de Deus a uma empresa que financie o seu projeto, com o dinheiro que é dele, do vizinho, da população enfim, é surreal... Se a cultura, como os outros setores precisam de financiamento, porque não destinar os recursos da renúncia fiscal para o Ministério, como o nome está dizendo, da Cultura, gerir esse dinheiro?
Em vez de patrocínios personalistas, por que não cria mecanismos de circulação para os milhares de profissionais músicos autoprodutores do país, que não querem ou não podem pagar o jabá para terem suas obras veiculadas pelos meios de comunicação, só lembrando, concessões públicas?
Por que não reapropriar os espaços públicos federais, estaduais e municipais como as universidades, escolas, centros culturais, meios de comunicação e teatros para que o artista autoprodutor possa trabalhar? O músico profissional não quer esmola, só quer ter condições dignas de trabalho como todo e qualquer cidadão.
E, para encerrar, peço emprestada uma frase do filósofo contemporâneo Antonio Negri: “Todos os elementos de corrupção e exploração nos são impostos pelos regimes de produção lingüística e comunicativa: destruí-los com palavras é tão urgente quanto fazê-los com ações.”
Fonte: ViaPolítica/A autora
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