“Saiba que os poetas como os cegos podem ver na escuridão” (Chico Buarque)
Na próxima encarnação quero vir artista outra vez. Falei isso para minha filha,
também artista, que não acredita em reencarnação, mas ouvia e se emocionava
junto comigo, músicas de meu letrista soberano. Conversamos sobre o que nos
leva a continuar criando mesmo com irrelevante retorno financeiro, como é o
nosso caso e de muitos. Para mim está claro: crio para não morrer ou
enlouquecer. Sei que de outra forma não daria conta da intensidade do que
sinto. Mas paradoxalmente só com esse sentimento avassalador é que me entendo
com a vida.
A criatividade nasce dos sonhos, da fantasia que todos temos, dormindo ou
acordados e é gerado pelo desejo de transformação. O inconsciente é livre e
para ele nada é impossível. Dessa liberdade muitas vezes incompreensível nascem
novas conexões que nos revelam saídas, novos caminhos para nossas questões
pessoais. E assim é para a maioria.
A criação de uma obra de arte vai além desse limiar. O devaneio precisa entrar
em acordo com a memória e a consciência individual e buscar um canal apropriado
de expressão para, de essa fusão nascer a possibilidade de fazer da lama um
anjo, dos sons separados uma música, das palavras soltas um poema. A fantasia
pessoal é instrumentalizada para se amalgamar a um material e ganhar uma forma
que será accessível ao outro. Para o artista, criar é cair em si para sair de
si.
Quando se diz que arte é muito mais transpiração que inspiração é para, talvez,
se livrar da idéia de que não é um trabalho. Ao contrário do castigo de Sífiso,
da lenda grega, condenado a empurrar eternamente morro acima a pedra que rola
morro abaixo, o artista precisa ir por caminhos que nunca passou antes. E, no
caso dos mestres, por onde nunca ninguém passou.
Quanto maior o artista, mais riscos corre. É preciso coragem existencial para
ir por mares nunca dantes navegados. Quanto mais dá asas à fantasia, mais
domínio do material é exigido. Quanto mais aperfeiçoa a linguagem, mais cuidado
precisa para não aprisionar a imaginação.
A conciliação entre natureza instintiva e civilização, que se fundem num fluxo
harmônico e encontram ressonância no outro, apresenta-se como resolução de um
conflito. Esse “estado de graça” que alcançamos quando admiramos uma obra de
arte que entra em sintonia com a nossa percepção, é o alívio de saber que
alguém pensou nisso antes e nos adiantou a viagem.
E há ainda aqueles que ampliam tanto as fronteiras da criação que sua obra só
encontra acolhida tempos depois de sua morte. Porque não se submeteram aos
padrões estéticos de sua época ou às leis dos homens ou às do mercado. Seguiram
as leis que não estão escritas e por isso se tornam imortais.
7/3/2010
Fonte: ViaPolítica/A autora
Texto inspirado em "Mozart: sociologia de um gênio" de Norbert Elias.