sexta-feira, 24 de abril de 2015

Bebel

Um dia cheguei em casa e ela estava lá, deitada na minha cama dormindo. Apenas levantou a cabeça, me olhou e perguntou -oi, tudo bem? Veio de algum mato perto da minha casa, subiu por muros e telhados até encontrar uma fresta no meu por onde entrou e entrava sempre que queria. Era uma gata de rua, e a chamei de Bebel por conta da personagem de Camila Pitanga numa novela desse tempo. Tínhamos nossos entendimentos. 

Eu sabia quando ela pedia ração, eu sabia quando ela pedia leite, eu sabia quando ela queria água que só bebia na minha mão em concha na torneira da pia. E ela sabia quando eu estava triste e então olhava nos meus com aqueles olhos verdes e doces - chora não... e dormia em cima de mim como para me proteger de toda tristeza. 

Quando ela chegou na minha casa e na minha vida era dia de São Francisco de Assis. Hoje quando cheguei em casa sua alma não estava mais no corpo. E lembrei seus olhos - chora não...  Sim Bebel, vou tentar. Agora você está comendo pela mão de um santo. 


quinta-feira, 23 de abril de 2015

segunda-feira, 20 de abril de 2015

Fragmentos de Maiakóvski

1
Me quer ? Não me quer ? As mãos torcidas
os dedos despedaçados um a um extraio
assim tira a sorte enquanto no ar de maio
caem as pétalas das margaridas
Que a tesoura e a navalha revelem as cãs e
que a prata dos anos tinja seu perdão penso
e espero que eu jamais alcance
a impudente idade do bom senso

2
Passa da uma
você deve estar na cama
Você talvez sinta o mesmo no seu quarto
Não tenho pressa
Para que acordar-te com o relâmpago
de mais um telegrama

3
O mar se vai
o mar de sono se esvai
Como se diz: o caso está enterrado
a canoa do amor se quebrou no quotidiano
Estamos quites
Inútil o apanhado
da mútua dor mútua quota de dano

4
Passa de uma você deve estar na cama
À noite a Via Láctea é um Oka de prata
Não tenho pressa para que acordar-te
com relâmpago de mais um telegrama
como se diz o caso está enterrado
a canoa do amor se quebrou no quotidiano
Estamos quites inútil o apanhado
da mútua do mútua quota de dano
Vê como tudo agora emudeceu
Que tributo de estrelas a noite impôs ao céu
em horas como esta eu me ergo e converso
com os séculos a história do universo

5
Sei o puldo das palavras a sirene das palavras
Não as que se aplaudem do alto dos teatros
Mas as que arrancam caixões da treva
e os põem a caminhar quadrúpedes de cedro
Às vezes as relegam inauditas inéditas
Mas a palavra galopa com a cilha tensa
ressoa os séculos e os trens rastejam
para lamber as mãos calosas da poesia
Sei o pulso das palavras parecem fumaça
Pétalas caídas sob o calcanhar da dança
Mas o homem com lábios alma carcaça.

(tradução:  Augusto de Campos)


sexta-feira, 17 de abril de 2015

A Rainha

Nomeei-te rainha. 
Há maiores do que tu, maiores. 
Há mais puras do que tu, mais puras. 
Há mais belas do que tu, há mais belas. 

Mas tu és a rainha. 

Quando andas pelas ruas 
ninguém te reconhece. 
Ninguém vê a tua coroa de cristal, ninguém olha 
a passadeira de ouro vermelho 
que pisas quando passas, 
a passadeira que não existe. 

E quando surges 
todos os rios se ouvem 
no meu corpo, 
sinos fazem estremecer o céu, 
enche-se o mundo com um hino. 

Só tu e eu, 
só tu e eu, meu amor, 
o ouvimos. 

Pablo Neruda, in "Poemas de Amor de Pablo Neruda" 


quinta-feira, 16 de abril de 2015

Elizabeth Barrett Browning

Ama-me por amor do amor somente.
Não digas: “Amo-a pelo seu olhar,
o seu sorriso, o modo de falar
honesto e brando. Amo-a porque se sente

Minh’alma em comunhão constantemente
com a sua”. Por que pode mudar
isso tudo, em si mesmo, ao perpassar
do tempo, ou para ti unicamente.

Nem me ames pelo pranto que a bondade
de tuas mãos enxuga, pois se em mim
secar, por teu conforto, esta vontade

De chorar, teu amor pode ter fim!
Ama-me por amor do amor, e assim
me hás de querer por toda a eternidade.

(Elizabeth Barrett Browning – trad. Manuel Bandeira)

Se me esqueceres

Se  me esqueceres
Quero que saibas 
uma coisa. 

Sabes como é: 
se olho 
a lua de cristal, o ramo vermelho 
do lento outono à minha janela, 
se toco 
junto do lume 
a impalpável cinza 
ou o enrugado corpo da lenha, 
tudo me leva para ti, 
como se tudo o que existe, 
aromas, luz, metais, 
fosse pequenos barcos que navegam 
até às tuas ilhas que me esperam. 

Mas agora, 
se pouco a pouco me deixas de amar 
deixarei de te amar pouco a pouco. 

Se de súbito 
me esqueceres 
não me procures, 
porque já te terei esquecido. 

Se julgas que é vasto e louco 
o vento de bandeiras 
que passa pela minha vida 
e te resolves 
a deixar-me na margem 
do coração em que tenho raízes, 
pensa 
que nesse dia, 
a essa hora 
levantarei os braços 
e as minhas raízes sairão 
em busca de outra terra. 

Porém 
se todos os dias, 
a toda a hora, 
te sentes destinada a mim 
com doçura implacável, 
se todos os dias uma flor 
uma flor te sobe aos lábios à minha procura, 
ai meu amor, ai minha amada, 
em mim todo esse fogo se repete, 
em mim nada se apaga nem se esquece, 
o meu amor alimenta-se do teu amor, 
e enquanto viveres estará nos teus braços 
sem sair dos meus. 

Pablo Neruda, in "Poemas de Amor de Pablo Neruda"
   


segunda-feira, 6 de abril de 2015

Não Estejas Longe de Mim um Dia que Seja

Não estejas longe de mim um dia que seja, porque, 
porque, não sei dizê-lo, é longo o dia, 
e estarei à tua espera como nas estações 
quando em algum sitio os comboios adormeceram. 

Não te afastes uma hora porque então 
nessa hora se juntam as gotas da insónia 
e talvez o fumo que anda à procura de casa 
venha matar ainda meu coração perdido. 

Ai que não se quebre a tua silhueta na areia, 
ai que na ausência as tuas pálpebras não voem: 
não te vás por um minuto, ó bem-amada, 

porque nesse minuto terás ido tão longe 
que atravessarei a terra inteira perguntando 
se voltarás ou me deixarás morrer. 

Pablo Neruda, in "Cem Sonetos de Amor"