domingo, 7 de março de 2010

SER ARTISTA

“Saiba que os poetas como os cegos podem ver na escuridão” (Chico Buarque) 


Na próxima encarnação quero vir artista outra vez. Falei isso para minha filha, também artista, que não acredita em reencarnação, mas ouvia e se emocionava junto comigo, músicas de meu letrista soberano. Conversamos sobre o que nos leva a continuar criando mesmo com irrelevante retorno financeiro, como é o nosso caso e de muitos. Para mim está claro: crio para não morrer ou enlouquecer. Sei que de outra forma não daria conta da intensidade do que sinto. Mas paradoxalmente só com esse sentimento avassalador é que me entendo com a vida. 

A criatividade nasce dos sonhos, da fantasia que todos temos, dormindo ou acordados e é gerado pelo desejo de transformação. O inconsciente é livre e para ele nada é impossível. Dessa liberdade muitas vezes incompreensível nascem novas conexões que nos revelam saídas, novos caminhos para nossas questões pessoais. E assim é para a maioria. 

A criação de uma obra de arte vai além desse limiar. O devaneio precisa entrar em acordo com a memória e a consciência individual e buscar um canal apropriado de expressão para, de essa fusão nascer a possibilidade de fazer da lama um anjo, dos sons separados uma música, das palavras soltas um poema. A fantasia pessoal é instrumentalizada para se amalgamar a um material e ganhar uma forma que será accessível ao outro. Para o artista, criar é cair em si para sair de si. 

Quando se diz que arte é muito mais transpiração que inspiração é para, talvez, se livrar da idéia de que não é um trabalho. Ao contrário do castigo de Sífiso, da lenda grega, condenado a empurrar eternamente morro acima a pedra que rola morro abaixo, o artista precisa ir por caminhos que nunca passou antes. E, no caso dos mestres, por onde nunca ninguém passou. 

Quanto maior o artista, mais riscos corre. É preciso coragem existencial para ir por mares nunca dantes navegados. Quanto mais dá asas à fantasia, mais domínio do material é exigido. Quanto mais aperfeiçoa a linguagem, mais cuidado precisa para não aprisionar a imaginação. 

A conciliação entre natureza instintiva e civilização, que se fundem num fluxo harmônico e encontram ressonância no outro, apresenta-se como resolução de um conflito. Esse “estado de graça” que alcançamos quando admiramos uma obra de arte que entra em sintonia com a nossa percepção, é o alívio de saber que alguém pensou nisso antes e nos adiantou a viagem. 

E há ainda aqueles que ampliam tanto as fronteiras da criação que sua obra só encontra acolhida tempos depois de sua morte. Porque não se submeteram aos padrões estéticos de sua época ou às leis dos homens ou às do mercado. Seguiram as leis que não estão escritas e por isso se tornam imortais. 

7/3/2010 

Fonte: ViaPolítica/A autora

Texto inspirado em "Mozart: sociologia de um gênio" de Norbert Elias.



SER ARTISTA

“Saiba que os poetas como os cegos podem ver na escuridão” (Chico Buarque) 

Na próxima encarnação quero vir artista outra vez. Falei isso para minha filha, também artista, março de que não acredita em reencarnação, mas ouvia e se emocionava junto comigo, músicas de meu letrista soberano. Conversamos sobre o que nos leva a continuar criando mesmo com irrelevante retorno financeiro, como é o nosso caso e de muitos. Para mim está claro: crio para não morrer ou enlouquecer. Sei que de outra forma não daria conta da intensidade do que sinto. Mas paradoxalmente só com esse sentimento avassalador é que me entendo com a vida. 


A criatividade nasce dos sonhos, da fantasia que todos temos, dormindo ou acordados e é gerado pelo desejo de transformação. O inconsciente é livre e para ele nada é impossível. Dessa liberdade muitas vezes incompreensível nascem novas conexões que nos revelam saídas, novos caminhos para nossas questões pessoais. E assim é para a maioria. 



A criação de uma obra de arte vai além desse limiar. O devaneio precisa entrar em acordo com a memória e a consciência individual e buscar um canal apropriado de expressão para, de essa fusão nascer a possibilidade de fazer da lama um anjo, dos sons separados uma música, das palavras soltas um poema. A fantasia pessoal é instrumentalizada para se amalgamar a um material e ganhar uma forma que será accessível ao outro. Para o artista, criar é cair em si para sair de si. 



Quando se diz que arte é muito mais transpiração que inspiração é para, talvez, se livrar da idéia de que não é um trabalho. Ao contrário do castigo de Sífiso, da lenda grega, condenado a empurrar eternamente morro acima a pedra que rola morro abaixo, o artista precisa ir por caminhos que nunca passou antes. E, no caso dos mestres, por onde nunca ninguém passou. 



Quanto maior o artista, mais riscos corre. É preciso coragem existencial para ir por mares nunca dantes navegados. Quanto mais dá asas à fantasia, mais domínio do material é exigido. Quanto mais aperfeiçoa a linguagem, mais cuidado precisa para não aprisionar a imaginação. 



A conciliação entre natureza instintiva e civilização, que se fundem num fluxo harmônico e encontram ressonância no outro, apresenta-se como resolução de um conflito. Esse “estado de graça” que alcançamos quando admiramos uma obra de arte que entra em sintonia com a nossa percepção, é o alívio de saber que alguém pensou nisso antes e nos adiantou a viagem. 



E há ainda aqueles que ampliam tanto as fronteiras da criação que sua obra só encontra acolhida tempos depois de sua morte. Porque não se submeteram aos padrões estéticos de sua época ou às leis dos homens ou às do mercado. Seguiram as leis que não estão escritas e por isso se tornam imortais. 

7/3/2010 

Fonte: ViaPolítica/A autora

Texto inspirado em "Mozart: sociologia de um gênio" de Norbert Elias.