segunda-feira, 30 de junho de 2014

NOTURNO - Ana Terra / André Bolívar

NOTURNO (UM) - Ana Terra / André Bolívar

Puxaram-me pelos braços, unhando minha pele,arrancando meus cabelos,
virando e revirando meu estômago.
Depois as loucas me jogaram em uma jaula 
e vez ou outra me atiravam pão e água;
mas toda noite exigiam meu olhar e sexo.
A elas não importava que eu estivesse
fraco e murcho, cansado e tonto,
aprisionado e louco.
Bastavam-lhes minha carne pouca e cada vez mais fria e o meu
olhar longínquo, meu hálito de quem está morrendo e as palmas 
das minhas mãos duras e ossudas com linhas sujas marcando
vida breve, vida brevíssima.
Em uma noite fria de Agosto ouvi a discussão violenta
acima da minha cabeça - era no porão que eu ficava.
Desceram as escadas nuas, como todas as outras noites.
Mas dessa vez cada uma trazia um cutelo reluzente nas mãos.

Eram quatro, a mais nova aparentava vinte anos e era a mais fogosa e maquiavélica, suas taras e sua mente doentia e seu fôlego interminável me deixavam exausto e por vezes,
apesar do meu medo e desespero, excitado.
Outra, aparentava não mais de trinta anos e era a mais suja
e também encarregada de deixar a água e o pão, diariamente.
A mais velha, que poderia ter entre noventa e cento e sessenta anos, era quem lavava minha jaula e a mim, 
demorando sempre mais do que o necessário para banhar-me,
sempre tocando em minhas partes e sussurrando que Onan
era seu mestre e mentor, que eu deveria semear o chão
e não as suas doces irmãs.
Eu deveria deixar a louca satisfeita ou dormiria
com ratos famintos enfiados em meu colchão
durante meu sono de morto.
Assim eu fazia.
Fazia tantas vezes quanto necessário, todos os pedidos,
todos os apelos, todas as sujeiras .
Sozinho, em duplas, em trios, com as sombras, com fome, com sede.

Por último, havia também a irmã gêmea da mais nova,
que vinha ao porão uma vez por semana, era o que eu imaginava
porque não tive mais noção do tempo desde que jogaram ali.
Ela era a única que sussurrara seu nome.Júlia. Pois gostava de cochichar
gosta de fazer com a Júlia? Júlia tá fazendo gostoso?
Além de ser a única loira dentre as três.

Como eu já disse, em uma noite fria de Agosto ouvi a discussão violenta acima da minha cabeça - era no porão que eu ficava.
Desceram as escadas nuas, como todas as outras noites.
Mas dessa vez cada uma trazia um cutelo reluzente nas mãos.
Júlia parou em frente a minha jaula, seu corpo
com curvas perfeitas e sorriu seu sorriso caridoso, treinado desde a infância.

- Eu quero a mão direita, a partir de hoje, vamos guardar cada pedacinho teu. 

As outras três uivaram, estremeceram, melaram.

Vi uma travessa de madeira, gazes , álcool, agulhas e linhas grossas.

- Antes, vamos brincar um pouquinho.

Largou o cutelo no chão e entrou na jaula.

Então Júlia deu sua primeira ordem: hoje brinco sozinha. 
Desde que me trancaram aqui todas obedeciam à velha que era a chefe das feiticeiras, achava eu, 
se bem que eram sempre as três todos os dias e essa aparecia só no sábado 
porque ela disse repetindo, porque hoje é sábado, porque hoje é sábado mas Saturno não descansa nunca! 
E as loucas por motivo que não pude alcançar estancaram os uivos 
e a loura fez apenas um sinal com o queixo apontando a porta.
Estremeci de medo e tesão porque ela brilhava na sua nudez era tudo dourado dos pés à cabeça 
e eu pensei ela veio me enfeitiçar, essa demônia vai acabar comigo.
Saíram as duas mais novas em silêncio e a velha praguejando essa desgraçada vai me pagar 
meu mestre Onan não permitirá que a vingança se interrompa. 
Esse pobre diabo há de pagar por tudo que nos fez, filho do cão. 
Foi a última coisa que falou ainda na sala mas se juntando às outras 
ainda pude ouvir a bruxa subindo a escada delirando contando para as irmãs, 
ele me amarrava naquela maldita árvore e enfiava seu sexo em todos os meus buracos, 
uivando feito um bicho cada vez que gozava e enterrava suas unhas na minha carne tenra 
e o sangue escorria misturado ao esperma do demo. 
Depois bateram a porta e nada mais ouvi. Eu não tinha mais líquidos no meu corpo exausto 
nem lágrima nem saliva pra gritar Não, Júlia! Não sou eu, não fiz nada, suas loucas! 
E desabei em soluços secos enquanto aquela luz dourada se aproximava e pela primeira vez 
não me unhou nem pisou nem mordeu. Abaixou devagarinho e começou a esfregar seus peitos 
no meu sem nenhuma pressa mas com delicadeza que tinha esquecido pertencer a alguma mulher. 
Meu deus, estou enlouquecendo e ela me hipnotizava com os olhos 
porque essa foi a arma das fêmeas quando viraram o coito por trás para a frente, 
assim o macho não estava fodendo qualquer vaca, qualquer cabra, ele tava vendo a cara dela 
ali de prazer, eu sou feito você meu macho, também tenho gozo e você vai guardar pra sempre 
essa minha cara de vadia e nunca vai esquecer que agora sou eu em cima de você 
e não poderá como Onan jogar na terra seu sêmen, ele é meu, 
dentro de mim você não existe mais e sim a sua descendência por todos os tempos. 
E enquanto ela gemia eu pela primeira vez nesse inferno comecei a umedecer e meu membro cresceu de forma nunca sentida e ela se ajeitou para eu entrar todo nela, 
essa luz dourada estava me enfeitiçando e depois o que será de mim se passar toda semana esperando ela chegar, um macho tem que esquecer a fêmea 
depois de se lambuzar nela e pegar outra para não se amaldiçoar de querer aquela, só aquela. 
E quando explodi dentro dela a minha alma foi até o céu ou inferno, eu e a maldita era uma coisa só, e naquele momento minha dor desapareceu 
e vivi a eternidade num átimo e nessa eternidade ela tirou a língua do meu ouvido e falou: elas são amaldiçoadas e por isso não têm nome. Eu sou a única nomeada: Júlia, Júlia,Júlia,Júlia .


NORTURNO (DOIS) - Ana Terra / André Bolívar

Extenuado adormeci ouvindo ela repetir seu nome como uma ladainha e pela primeira vez desde que entrei naquela jaula eu tive um sonho 
como se naquele inferno algum maldito anjo tivesse se compadecido de mim, 
se eu acreditasse nesses malditos seres alados e assexuados a vagar na eternidade como partículas de luz fria, sem nenhum calor humano. 
Eu galopava voltando do deserto com minhas botas de sangue 
que pisotearam os infames na ultima batalha e só queria encher a goela de vinho até estourar, que nem ia me saciar nas vadias perto da taberna e quanto mais galopava minhas veias iam inchando de ódio pela humanidade,
 e eu apeava num salto no lugarejo feito um oásis , com poços e mata, 
pegava uma terrina de vinho e bebia sem respirar, meus próprios olhos eu enxergava, como olhos do demo e pegava a primeira mulher pela cintura e levava esperneando e amarrava num toco e me servia dela como um bicho e ela gritava -Júlia, -Júlia e eu esbofeteava a maldita 
e foi juntando um monte de homens embriagados em volta - essa feiticeira vai ter o que merece, a fogueira já vai acender. 
E saio alucinado para pegar uma outra que se escondia por trás das árvores e vi que eram três.
 A primeira amarrei do outro lado do tronco e ofereci para os homens se fartarem, 
depois corri para pegar as duas que fugiam, duas meninas, carne fresca e eram iguais 
não fosse o cabelo escuro de uma e o claro de outra, mas essa conseguiu escapar, 
e levei a outra para amarrar com as duas e servir aos homens enquanto gritavam - mãe, mãe, e vi que as malditas eram da mesma família de bruxas, e não quis encostar nelas, 
agora eu só queria a loura, e a mais velha continuava gritando - Júlia , Júlia , 
então é esse o nome da que faltava, a que eu quis porque tinha uns olhos de princesa, 
e corri pelo povoado inteiro a cata dela, porque com essa eu ia fazer diferente, não ia machucar, meu ódio sumiu de repente enquanto feito louco procurava a primeira mulher que me tocou a alma e não só a carne, e depois de nunca desistir, gritando pelo seu nome, um velho com cara de demente me apontou um porão escuro e eu desci num pulo e lá estava a moça loura completamente nua e brilhando feito o sol e eu arranquei minha roupa mas não pulei em cima, 
fui me aproximando devagar hipnotizado por tanta beleza não reparei que ela tinha as mãos escondidas e quando estava bem perto só vi duas cruzes afiadas vindo na direção dos meus olhos .
Acordei assustado na jaula e só vi a mão que puxou uma seringa da bolsa sobre a mesa. 
Aplicou-me uma injeção, dizendo-me ser vitamina. Eu não tinha forças para lutar.
 - Esta noite você terá paz, disse Julia, dando-me as costas enquanto minha visão turva olhava sua bunda dura, perfeita, subindo as escadas. 
Eu tinha um pano, uma bacia metálica e minhas unhas compridas. Imaginei se conseguiria asfixiar uma delas com o pano, ou dilacerar sua jugular com minhas unhas ou então afiar a borda da bacia na parede até transformá-la em uma arma branca. 
Julia disse que eu teria paz naquela noite. Eu quase confiava nela, eu precisava confiar nela. Então relaxei. Fui ficando mais tonto e lembrei da injeção. Adormeci enquanto friccionava a bacia na parede.
Acordei cego.
Sim, quem me alimenta; quem me ama mais do que a si é a mesma pessoa que escreve as minhas memórias, ela ama os meus pedaços e agora somos só nós dois, já não há ninguém mais entre nós.
Ela prometeu não censurar nada do que eu disse aqui e assim acredito.
Ela me serve de olhos e de mãos, como se as suas fossem as minhas, tamanha a intimidade que seu tato tem com o meu corpo.
Devemos passar o resto dos minutos que nos restam juntos.
Minutos de calor e mãos.




domingo, 29 de junho de 2014

AMOR LÍQUIDO

No mapa do céu um triângulo poderoso, Lua, Vênus, Netuno, meu mestre falava -Ana, você é quase um arquétipo amoroso e já que não tenho nenhum lado lógico nem cético, assumia a sina me sentindo abençoada. E entendi então meus três orixás da água, das mais escuras às mais claras, que Mãe Menininha enxergou assim: Oxum, Iemanjá e Nanã em mim. E entendi depois a menina a mulher a senhora, essa mulher que sorrindo chora, que amando um homem adora e adorando o que for se apega. Esse apego que todo mundo nega. Mas vem Bauman dizer, e me liberta, que o mal da pós modernidade é isso, o desapego, onde tudo é descartável. 

Em sociólogo acredito quando interessa porque não sou boba mas maleável e meu amor, que me escolheu entre todas as  mulheres do mundo, entre as sãs e as loucas, vai me construindo como um lego interminável, com as peças, os pedaços, que lhe entrego. Comunista mágica, mística, firmamento. Dele só sei que é ateu, quase um crime. Mas pensando bem, muito bem...vou com ele até Deus me livre.

Ana Terra

sábado, 28 de junho de 2014

O LUGAR DO GOLEIRO

Tanto quanto os homens, mulheres também gostam de ver corpos, e no esporte tem para todos os gostos. Eu tenho preferência pelos italianos, são tão belos que me peguei imitando aquele gesto meio automático dos homens de virar a cabeça para ver a bunda das mulheres, e quase dei com a cara num poste em Roma. Não gosto de esportes mas acompanho se meu companheiro gosta e fico feliz por ele quando seu time ganha. Não corto seu barato empunhando críticas políticas, psicológicas, filosóficas que não tem sentido para ele, só para mim que enxergo o mundo pelas lentes dos que se dedicam a pensar o mundo, esse é meu esporte favorito. E as palavras faladas são invasoras, ou tampamos os ouvidos ou damos um tiro na matraca, hipótese radical. A palavra escrita é recatada, só se expõe se o leitor a procura e pode interromper o conluio no momento que quiser. Por isso escrevo, porque sou silenciosa normalmente. 

Mas do futebol já se interpretou muito em comparações da rede com o útero materno e o gol como o retorno a esse lugar de paz para onde todos desejariam voltar. Eu complemento que é o confronto entre o yin e o yang, os princípios do feminino e masculino, presente em todos nós, em doses diferentes como aparece na sua imagem clássica. Ying é o princípio passivo, feminino, noturno, escuro e frio. Ele fica do lado esquerdo da esfera, na cor preta. Yang é o princípio ativo, masculino, diurno, luminoso e quente. Está representado pelo lado direito da esfera, na cor branca. São opostos e complementares. No futebol masculino, além dos homens, a violência, a força, o movimento indicam a claridade. Onde estaria a pitada de Yin contida no Yang? No goleiro. Ele está na posição passiva do receptivo e da defesa. E muitas vezes o passivo é quem vence, como foi Julio Cesar, esse príncipe,  na partida entre Brasil e Chile. 

Ana Terra 

O MUNDO NÃO PODE SER UM CAMPO DE FUTEBOL

Definitivamente o mundo não pode ser um campo de futebol onde estamos para derrotar o inimigo que carrega uma  bandeira diferente da nossa e que assim também nos enxerga. A platéia de indivíduos reunidos como massa quando se dilui a consciência individual e  entra em cena a sombra coletiva, inconsciente portanto,a projetar suas derrotas e vitórias pessoais nos pés, na voz, seja lá no que for,  naquele  que no momento está no centro da arena, nos retira a humanidade adquirida. Por outro lado, o mundo não existe a priori, é uma construção permanente de interação nossa com o mundo, isso nos afasta da confortável condição de que não temos nada com isso. Como nos ensinam, Maturana e Varela, biólogos chilenos que revolucionaram o pensamento científico, a evolução da vida não se deu pela competição e sim pela colaboração. A linguagem verbal só poderia ser inventada em torno de convenções, acordos tácitos, práticas interativas. Enquanto nossa alegria depender da negação do outro, estaremos perdidos. 
                                            Ana Terra 

sábado, 21 de junho de 2014

A alma encarnada - 7 - Drogas

Não tenho distanciamento crítico, embasamento científico ou pretensão acadêmica, me baseio apenas na experiência vivida. Um amigo que já foi dependente químico e nossas conversas sobre drogas, sexo e rock n' roll. Over dose, depressão, fundo do poço e solidão. Mas também horizontes azuis, cânticos e maravilhamento. O que pude observar em muitos anos é que não se pode lidar com a questão da dependência química demonizando a droga.


Em primeiro lugar precisamos admitir que droga é bom. Cerveja, cigarro, vinho, maconha, calmante, açúcar, cocaína, analgésicos, daime, morfina, café, Coca-cola. Ruim é a dependência provocada pela compulsão. Que pode ser por uma substância, pode ser por sexo, pode ser por dinheiro. Existem inúmeras formas de ser dependente. Inclusive do tratamento.

As pessoas se drogam basicamente por dois motivos. Para sentir menos ou para sentir mais. As drogas que anestesiam e as que abrem mais portas para a percepção. Nas duas formas estão contidos prazer e dor, como tudo na vida. Quando a dose se torna over é porque o namoro com a dama sedutora chamada Morte está virando um caso sério. Ninguém quer que um ente querido morra. Temos enorme dificuldade de encarar o fim. Criamos deuses e religiões para acreditar que a vida não termina com a morte mas não aceitamos que alguém em sã consciência possa preferir morrer a viver. Quem nunca sentiu vontade de sumir? Há momentos em que a gente olha para a vida e pergunta: poxa, é só isso? Quero brincar de outra coisa!...



Claro que tudo se tenta para livrar quem se sente prisioneiro das drogas, inclusive o tratamento considerado mais eficaz que são o AA e o NA, modelo americano formatado no molde evangélico do testemunho. Só tem que ter cuidado para não trocar uma droga por outra. Essa afirmação de que são todos portadores de uma doença incurável chamada dependência química é tomar a consequência como causa. Além de bancar um grande comércio que se sustenta no “tratamento” do dependente.

sábado, 14 de junho de 2014

A alma encarnada - 8 -CONSUMO E CRIANÇAS


As alegrias e tristezas de viver nesse nosso tempo deixaram como marca em mim a certeza de que ninguém tem mais direito à ingenuidade de não saber que o mundo é como é. No distante e no próximo. Todos os dias, os acontecimentos mais corriqueiros nos convocam a ter uma posição, mas quantas vezes fazemos corpo mole e nos fingimos de tontos? Como por exemplo, que os meios de comunicação estão a serviço da publicidade que os sustenta, todos nós sabemos.  Mas que ao permitir que nossas filhas ou netas se vistam como putas e dancem na boquinha da garrafa como ordenou a rainha dos baixinhos e que assim incentivamos não só o consumo mas também a pedofilia, é tão chato pensar... que isso a gente finge que não sabe.

Quando um flanelinha, num tom misto de humildade e ameaça velada, cobra para a gente estacionar o carro no espaço público, nós pagamos para não sofrer represália. Não queremos nem pensar que o tecido social está tão esgarçado que vai arrebentar a qualquer momento, e afinal esse papo de luta de classes está tão fora de moda...  Quando fechamos rapidamente a janela do carro se um pivete se aproxima, além do medo, a gente sente raiva de ser importunado. Nem queremos pensar que se nossos filhos precisam do tênis e da mochila de marca para serem aceitos, a mesma mensagem publicitária também chega ao menino de rua.

Mas em algum momento de nosso mal estar uma voz lá dentro pergunta: que merda de mundo é esse em que a gente passou a ter medo de criança?


in "Relato de uma aprendizagem" / 2004


terça-feira, 10 de junho de 2014

A alma encarnada - 9 -NÃO SEI LIDAR COM AS PERDAS

E nem quero. Teria que me transformar em outra pessoa. O que se vai de ruim alivia mas quando é alguém que amamos? Por morte então, é a pior perda porque nem temos a chance de reverter. Em vida, se não consigo, não é um vazio em mim que se abre mas um peso que carrego. 

Muitas e muitas vezes mudam as formas e os conteúdos do afeto, passando de um estado a outro: paixão, amizade, namoro, casamento. Afinal, qualquer maneira de amar vale a pena. O afeto recíproco também pesa, mas é uma força ao contrário, que nos faz flutuar. Mas a rejeição de quem amamos puxa para baixo. Causa tristeza, depressão, melancolia. 

Mas talvez, se eu nunca afundasse, jamais soubesse o que é voar.

quarta-feira, 4 de junho de 2014

A alma encarnada - 10- VIVER FAZ MAL À SAÚDE

A vida hoje é mais longa e temos mais recursos para nos curar. E também para adoecer. Não sou obscurantista a ponto de não reconhecer os avanços das pesquisas e da ciência para mudar o mundo. Para o bem e para o mal. O que me espanta é não se fazer uma reflexão crítica sobre as informações que recebemos de enxurrada a cada minuto. O que está por trás de cada pesquisa e de cada notícia sobre saúde. 

Se o poder econômico e a ideologia americana comandam o mundo, não há como abstrair esse dado da reflexão. Já que o assunto é muito extenso, vou me ater sucintamente a apenas um dos mais polêmicos: cigarro careta. As estatísticas que apontam o cigarro como causa de morte não cruzam todas as outras práticas daquela pessoa, alimentos com agrotóxicos e poluição de veículos, sabidamente causadores de câncer e de outras doenças. E que todos, fumantes ou não, consomem. Sem falar em álcool e medicamentos alopatas em excesso.

As indústrias: farmacêutica, de armamento, de drogas ilegais e do petróleo são os setores  mais ricos da economia. E por isso tem o lobby mais poderoso. O tabaco virou o vilão da história. Mas praticar corrida em rua onde circulam veículos movidos à petróleo equivale a fumar 3 cigarros por quarteirão respirado. Só para a gente pensar um pouco sobre isso. 

Mas como disse o poeta Capinam: 
Estou aqui de passagem
Sei que adiante
Um dia vou morrer
De susto, de bala ou vício
De susto, de bala ou vício...

terça-feira, 3 de junho de 2014

A alma encarnada 11- AI, COMO DÓI

Muitos pensam o mundo como uma realidade autônoma, anterior e separada do ser humano que, por sua vez, seria um banco de dados a armazenar passivamente o conhecimento que recebe. A visão fragmentada da vida, em variadas correntes do pensamento, tem sido hegemônica porque serve ao poder dominante. Ao enfraquecer a vida, separando-a em partes, o indivíduo perde sua potência e, ao fragmentar-se, pode ser manipulado com mais facilidade.

Vivemos a era da especialização, do clone e do descartável. Conhecendo cada vez melhor o menor, nos afastamos da totalidade. Quando sentimos dor, nos referimos a um pedaço do corpo que dói e consultamos o médico especializado naquela área. Mas, na verdade, quando adoecemos, é nossa unidade de corpo e alma, nosso mundo que adoece. Estamos nos comunicando, usando a doença como metáfora, uma linguagem para dizer que alguma coisa no mundo percebido, que, por sua vez me percebe, está em desequilíbrio.

Mas quando necessitamos de um atendimento médico, na maioria das vezes, em vez de uma terapêutica de reintegração, somos induzidos a mais fragmentação. Isolam-nos de nossa história pessoal e dos elos afetivos para facilitar a prática de uma medicina invasiva, impessoal e pragmática, onde somos avaliados do ponto de vista de um saber padronizado e estatístico. Privilegiando a objetividade como condição para a exatidão científica, o subjetivo é jogado fora como a criança junto com a água do banho. Como nos diz Merleau-Ponty, “A ciência manipula as coisas e renuncia a habitá-las.” 

A alma encarnada -12 - Exclusão Social e Afetiva

Precisamos reconhecer que somos privilegiados por pertencer a uma classe social que além de comer todo dia, tem acesso a tantos alimentos da alma. Isso nos convida a refletir sobre uma questão permanente na vida do Homem e que a despeito de todo o conhecimento acumulado durante séculos mostra cada vez mais sua face brutal na atualidade: a exclusão social e afetiva.

O uso que fizemos dos grandes inventos tecnológicos foi e é cada vez mais imoral. Com nossa participação ativa, ou nossa omissão, o que no fim dá no mesmo, permitimos que a riqueza gerada pelo trabalho de toda a humanidade em vez de se transformar em melhores condições de vida para todos, foi parar nas mãos e mentes cada vez mais anônimas dos que operam os grandes conglomerados econômicos.

Essa nova forma de gerenciar o mundo criou um dogma para tentar tornar inquestionável seu poder: a chamada ‘globalização’. Mesmo concordando com a visão otimista de Antonio Negri[i] , afirmando que o mesmo germe de construção do Império está presente em sua destruição, como por exemplo, a mesma globalização tecnológica permitiu a democratização imediata da informação, pela rede da Internet, a questão é que não basta ter conhecimento dos fatos, é preciso que eles nos afete, é preciso incorporá-los.

Na verdade somos massacrados continuamente pelo braço mais perverso desse sistema: os meios de comunicação de massa. Sua perversão consiste em nos iludir de que estamos participando dele ao receber todo tipo de informação. Aí está o grande engano. Qualquer informação que exceda nossa capacidade de elaborar se transforma num lixo que vai se acumulando até entupir de vez nossos canais de percepção. 


E são esses canais entupidos que permitem, por exemplo, que uma notícia aterradora como a existência de brasileiros vivendo hoje sob regime escravo em nosso próprio país, receba do governo como punição, simplesmente o não direito a financiamento público quando se trata de crime hediondo contra a humanidade. Ou que aceitemos como verdade que o MST-Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra seja o que é mostrado todos os dias no noticiário: um bando de porra-louca baderneiros que sai por aí invadindo propriedades produtivas. Por que não mostram o projeto educacional do MST, sua agricultura orgânica ou uma Mística? Por que não dizem como Noam Chomski que é um dos movimentos sociais mais importantes que acontece no mundo?  Que suas propostas podem criar um novo paradigma de vida para a humanidade?

Ou por que fugimos como o diabo da cruz quando ouvimos ”-aí, perdeu, tá ligado, já é.”? A mídia burguesa já nos mostrou que esse é o dialeto dos bandidos. E além do mais não podemos suportar a idéia que a juventude favelada e excluída tenha capacidade de organização política como o movimento Hip Hop. E que analfabetos sejam criativos, potentes e produzam arte. Em nossa arrogância de elite desprezamos tudo aquilo que não podemos controlar. E os desqualificamos.

in: Minha Arte: relatos de uma aprendizagem 2004




[i]  Negri, Antonio. “O Império”