As alegrias e tristezas de viver nesse nosso tempo deixaram como marca em mim a certeza de que ninguém tem mais direito à ingenuidade de não saber que o mundo é como é. No distante e no próximo. Todos os dias, os acontecimentos mais corriqueiros nos convocam a ter uma posição, mas quantas vezes fazemos corpo mole e nos fingimos de tontos? Como por exemplo, que os meios de comunicação estão a serviço da publicidade que os sustenta, todos nós sabemos. Mas que ao permitir que nossas filhas ou netas se vistam como putas e dancem na boquinha da garrafa como ordenou a rainha dos baixinhos e que assim incentivamos não só o consumo mas também a pedofilia, é tão chato pensar... que isso a gente finge que não sabe.
Quando um flanelinha, num tom misto de humildade e ameaça velada, cobra para a gente estacionar o carro no espaço público, nós pagamos para não sofrer represália. Não queremos nem pensar que o tecido social está tão esgarçado que vai arrebentar a qualquer momento, e afinal esse papo de luta de classes está tão fora de moda... Quando fechamos rapidamente a janela do carro se um pivete se aproxima, além do medo, a gente sente raiva de ser importunado. Nem queremos pensar que se nossos filhos precisam do tênis e da mochila de marca para serem aceitos, a mesma mensagem publicitária também chega ao menino de rua.
Mas em algum momento de nosso mal estar uma voz lá dentro pergunta: que merda de mundo é esse em que a gente passou a ter medo de criança?
in "Relato de uma aprendizagem" / 2004
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