A cultura não está separada da vida, e contra essa dicotomia, onde a cultura dominante é endeusada, distanciada da função de instrumentalizar a existência, Artaud sempre protestou: “Eu escrevo para analfabetos”. Essa maravilha de frase dita por um escritor é uma demonstração de que a linguagem da arte, que se constrói por metáforas, é linguagem da mesma ordem da loucura, como bem disse Althusser na autobiografia: “o delírio também é realidade”.
As insuportáveis verdades de Artaud são como um bálsamo para minha alma de artista, que reconhece em suas palavras, focos de luz de inúmeras origens e tons, a colorir a escuridão de todos nós. Mas para enxergarmos um pouquinho melhor, é necessário o trabalho cotidiano e humilde de polir nossas lentes, lembrando o que fazia literalmente, para sobreviver, aquele que segundo Bertrand Russel é “o mais nobre e mais amável de todos os grandes filósofos”, Spinoza:
“Da essência de Deus resultam coisas infinitas em número infinito de modos; mas explicarei apenas aquelas que podem conduzir-nos, como que pela mão, ao conhecimento da alma humana e da sua beatitude suprema.”.
Artaud que bebeu nas fontes do México e do Oriente vai trabalhar com o conceito de cultura em ação, agindo como força e exaltação, ao contrário do ideal europeu de arte que separa espírito e força, e que ao se contentar em apenas assistir à sua exaltação, provoca algo semelhante à morte. E porque temos medo de uma vida fundamentada na magia, a transformamos em signos mortos. Sua proposta radical de teatro como espetáculo da vida e suas sombras, propõe abrir mão das facilidades da linguagem habitual para buscar um retorno à energia primordial.
Ninguém mais distante de mim que Artaud. Eu não passo de uma dona de casa e avó, artista burguesa a escrever versos de música, mas que se permite alguns momentos de maior liberdade: no ato da criação. Este é um momento absoluto. Ao escrever com lápis e papel ou computador, uma letra de música, um poema, uma peça teatral, um roteiro de filme, um romance ou um artigo, utilizo códigos e instrumentos da civilização mas não é só isso. Não é só a função pensamento e o elemento ar que estão sendo acionados. A intuição (fogo), a sensação (terra) e o sentimento (água) precisam fluir livremente na minha mandala interior para que a obra ganhe vida e me alimente, me devolva a energia que gastei para criá-la. Anulando a dualidade, criador e criatura são uma mesma e única natureza. Não é só produzindo arte que se alcança esta inteireza. Cozinhando, estudando ou cuidando de alguém, podemos reencontrar a poesia em nós e nas coisas que nos rodeiam.
Da mesma forma que o encontro amoroso quando realiza a alquimia perfeita é muito mais que o ato sexual em si: é uma obra de arte. Essa sensação de pertencer ao cosmos também pode ser alcançada no transe místico ou quimicamente. Mas a maioria das pessoas não pode viver em permanente estado alterado de consciência sem se consumir até a morte final. Então qual é a saída?
Acredito que ela precisa ser construída por cada um de nós em forma de pontes, dentro da paisagem do conhecimento, formando elos entre diversos saberes, mas tendo como fios condutores a arte e a filosofia, tecendo uma generosa rede de compreensão porque nela, tudo cabe, e nada do que é humano lhe é estranho.
In "Relato de uma Aprendizagem" - Ana Terra/2004
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